domingo, 26 de fevereiro de 2017

és texto



Uma tristeza sem anúncios se instalou no instante; intensa, sorrateira. Sem movimento, ela interferiu no olhar. Assim, as cores apresentaram uma tonalidade que não conheci. E o perceber o tempo se tornou um exílio.

Carne, corpos e escolhas. Transeuntes de um hall que esconde vaidades, necessidades, desejos e aflições. Narrativas pontuadas pelo corpo que fala, pelos gestos, pelas roupas, pelos cheiros, e silêncios. Transeuntes são estandarte de um estilo, pintando a diversidade dos saguões. Observo. O sentimento é refém.

O cansaço e o aprender a descansar. Destroços e distrações.
Reluz então o esplendor pujante que me refaz escolhas.
és tu texto, impregno-me de ti
e ler é tornar-se cúmplice do porvir...

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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Títeres


Espera-se compreender o ser humano e o desdobramento de suas ações na manutenção da sociedade. Para isso, faz-se necessário observar suas diversas relações e padrões de comportamento e evolução. Alguns sociólogos e antropólogos acreditavam que para atingir a desejada análise do ser, era necessário destituí-lo de tudo que o compõe e observa separadamente e depois verificar o conjunto. Uma busca por constantes universais do traço humano.


As constantes universais não se constituem a melhor estratégia para compreender a constituição do ser humano. Clifford Geertz já afirmou que “pode ser que nas particularidades dos povos sejam encontradas algumas revelações mais instrutivas sobre o que é genericamente humano” (GEERTZ 1989).


Assim, ao observar o modus operandi do indivíduo enquanto sujeito social, percebe-se que ele alterna entre momentos de busca por poder e transferência de poder para evitar desgaste e obter zonas de conforto.


No que concerne a representação social, importante verificar a personifersonalização política reflete uma busca humana por referenciais que guiam e representam a massa em cenários complexos. No entanto, quando direcionado o referencial para um personagem, se ele cai moralmente, corrompe uma ideologia e rotula os representados. a transferência de atribuições e responsabilidades faz com que um personagem esteja acima de grupos. A individualização da representação social propicia o colapso moral do que se entende como sociedade. No entanto, esse processo é característica humana em busca de referenciais.


O processo supracitado favorece também à alienação. Um exemplo pode ser observado no comportamento social nas eleições. O desconhecimento sobre o funcionamento do processo político das listas fechadas e abertas e voto de legenda faz com que a tradição por personalizar eleja famosos e emposse oportunistas de baixa representatividade. Deste modo, nada muda; enquanto se depositar a esperança de um mundo melhor em um personagem, um salvador, e não em uma instituição política comprometida com demandas e valores sociais. A massa busca por um Messias, mas elege sempre um Pilatos, aliando-se a Barrabás. Revisitar a história política no Brasil e no mundo e transitar por trajetórias pessoais que interferiram na ordem social com o pretexto de defender interesses coletivos. Pense em épocas e lembrará de nomes  ao invés de pensamentos. O ser humano vive em busca de referenciar tudo o que vê e conhece,e se possível personaliza, delegando funções que o permitam voltar para zona de conforto social.


A construção do ideal a partir de uma personagem tem causado furor social no Brasil, pois uma ideologia e plano de governo não pode ser preso, ou ter a vida pessoal desmoralizada, mas um personagem sim. As recorrentes investigações em diversas esferas, com punição, prisões e até mesmo desconstrução dos personagens eleitos têm exigido da população uma reflexão sobre os referenciais, a busca por novos personagens e até mesmo um novo olhar sobre o modelamento político social, que deve transitar da personalização para uma madura cultura colaborativa, talvez como no visionário La Belle Verte (França: 1996 Dir. Coline Serreau).


Portanto, para melhor conceber uma percepção do ser humano no processo de personalização de sua  na sociedade, definindo um sujeito como soberano das decisões da massa, é fundamental fazer uma leitura de paisagem, mais abrangente, compreendendo a formação da consciência crítica e como se forma a esfera e opinião pública.


  • Opinião Pública - (não)


“A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana.” (HABERMAS, 2003: 92).


Considerando a imprensa, a mídia, o termômetro e cajado social, é relevante ver à luz da escola de Frankfurt, a maneira que a comunicação interfere e modula a política social. Trata-se de um olhar que vai além da teoria do agendamento (Agenda Setting) mas que consegue observar os discursos serem embalados em uma narrativa que transforma um interesse segmentado (ou até mesmo individual) em patrimônio cultural da massa, interferindo assim nos padrões de comportamento social. A mídia alimenta o que condena para manter-se no fiel da balança de interesses. Com o avanço das plataformas, o ciberespaço e a inteligência coletiva (conforme concebe Levy) tornou-se palco do fazer político, empoderando a comunicação. A organização política ganha assim novas nuances de articulação com as novas plataformas e linguagens de comunicação. A interação social então é contaminada pelo repertório de cada indivíduo, mas elementarmente pelo que considera coletivo, público ou privado; seja o espaço, seja o discurso.


Então emerge, na Era da Informação, a dicotomia entre Opinião Pública e Opinião tornada pública (Publicada). A autonomia da população e sua pública opinião é questionável, uma vez que é orquestrada pela mídia. É possível verificar então um processo de teatralização dos discursos. A opinião pública não existe para Bordieu, pelo menos não como concebem e defendem os meios de comunicação e pesquisa.

Uma das dimensões muito importantes da teatralização é a teatralização do interesse pelo interesse geral; é a teatralização da convicção do interesse pelo universal, do desinteresse do homem político – teatralização da fé no padre, da convição do homem político, de sua confiança naquilo que faz. Se a teatralização da convicção faz parte das condições tácitas do exercício da profissão de clérigo – se um professor de filosofia deve parecer acreditar na filosofia -, é porque é a homenagem fundamental do personagem oficial para com a autoridade; é aquilo que precisa conceder à autoridade para ser uma autoridade, para ser um verdadeiro personagem oficial. O desinteresse não é uma virtude secundária: é a virtude política de todos os mandatários. As escapadelas dos padres, os escândalos políticos são o colapso dessa espécie de fé política na qual todos estão de má-fé, a fé sendo uma espécie de má-fé coletiva, no sentido sartriano: um jogo no qual todos mentem a si mesmos e aos outros, sabendo que os outros também mentem a si mesmos. (Bourdieu 2012)

"Um homem oficial é um ventríloquo que fala em nome do Estado" (BOURDIEU 2012). A comunicação política  deveria atuar como instrumento de esclarecimento e embasamento para a opinião pública escolher os rumos da sociedade. Além de instrumento de argumento para tomada de decisão, a comunicação deveria ser um mediador do diálogo transparente da gestão pública e atuação política com a sociedade. Entretanto, ela funciona como um cabresto de influência com uma narrativa viciada em prol de um personagem e não do público, revelando deste modo um dos riscos de personalizar a política.


A mídia (meio) exerce então poder de controle e não de mediação na sociedade e a política (tudo referente a cidade, civilização e público) cada vez mais se restringe a artimanhas concernentes aos interesses de alguns personagens detentores de poder;poder esse concedido pela massa que o condena. E esse quadro não muda apenas com as recorrentes manifestações e rompimentos cíclicos na história da humanidade, pois eles caracterizam enas a transição de paradigmas como defende Kuhn e sua revolução científica. A mudança almejada no modelamento político da sociedade depende de um processo de “desaprendizado” como defendia Manoel de Barros em seus livros. Buscai as pré-coisas e vislumbrem um novo horizonte debaixo dos pés. Caso contrário, permaneceremos na dança dos títeres. Alternando apenas funcionalidades e paradigmas.

BOURDIEU, Pierre. Fonte: Le Monde Diplomatique – Il manifesto, via micromega Janeiro de 2012 / Tradução: Mario S. Mieli


GEERTZ, Clifford: A interpretação das culturas, Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.


HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1984.

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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

sutil




O pássaro. Uma família, Trochilidae. Várias espécies; várias flores. Lábios a serem beijados como versos a serem traçados. O segredo do beijo, o segredo do voo, o mistério do olhar. Ele encanta pelo que é, pelo que faz e me faz. O amor em letras é carne dos versos desse dorso, corpo poesia.

O peso. O dia que não se explica, mas embarga o choro. O pensamento; o gesto que a palavra não suporta, não carrega e nem traduz. Sutil, ele segue seu voo.


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

climáticas mudanças


Alternância conceitual, sensações dançam em um frenético ritmo, o do silêncio. A mudança. Felicidade. Busca. A inquietação alimenta estigmas da humanidade que pulsam na iminência de encontrar a peça que lhe falta no quebra-cabeça. Uns vivem ignorando este fato, e se atêm às praticidades da vida (seja por necessidade - princípio básico de foco na sobrevivência - ou por simples alienação pelo conforto de apenas fluir), outros enlouquecem a percebê-lo. E sempre há os que transitam pela cidade das sombras sabendo a verdade de Shell Beach, mas ainda querendo refrescar-se nela.

Calmas águas levam sentimentos para o mar. Terra, peixes, madeira e algumas estrofes despedaçadas. Ele não sabia que parte dele também ia naquele rio. Parte que ele nem sabia que dele um dia já foi.

Sorrisos trincados rompem o horizonte. A sala se enche de uma expectativa morta, de uma sensação estranha de esmagamento, a partir de dentro. Os olhos indicam um coração espremido. Prestes a transbordar, o olhar toma as rédeas dos pensamentos e alça voo.

Sutil como um raio rompe o céu. Algumas situações fazem estrago pela sutileza que carregam. O estrondo posterior apenas é lamúria fúnebre de uma emoção sepultada, de um agonizante sentimento que outrora pujante exalava beleza.

De todo o papel gasto, que palavras faltam? Quais sobram? O amor posto à prova, perpassa chuva, sol e desconstruções. Se morre, era mesmo ele amor? ou ensaio? se vivo, permanece o que há de ser? "O amor, quando nasce, só vê a vida, o amor que dura vê a eternidade". Victor Hugo in 'Carta a Juliette Drouet'

Climáticas, mudanças despontam no horizonte. Brilha.


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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Conteúdo Social - as narrativas pulsam


Uma matriz de conceitos rege organizações e até mesmo confunde gestores em uma promessa de êxito de fluxos complexos em busca de transparência, que aparentemente deveria ser o resultado de processo simples. Matriz de risco, sustentabilidade, responsabilidade social, engajamento profissional, territorialidade, compliance, stakeholders, brandend content e tantos outros.

Richard Edelman, referência em Relações Públicas, com graduação e MBA em Harvard, afirma que “Ganhar dinheiro apenas já não é o suficiente; é preciso também melhorar ativamente a sociedade. As organizações têm a obrigação de demonstrar altos padrões éticos e provar continuamente que não estão interligadas de forma indecorosa com líderes do governo”.

Percebe-se que os padrões éticos de uma corporação devem estar refletidos em suas narrativas não de forma engessada, mas de forma que os empregados da empresa absorvam e reproduzam o discurso da empresa se apropriando dele como seu. Brandend Content e as novas nuances midiáticas interferindo ou se adequando ao fluxo social contemporâneo. O modo como as pessoas se relacionam com a comunicação, na geração e absorção da informação e criação de sentidos exige novo modelamento. Em um ritmo frenético entre acessar e produzir conteúdo, o usuário não se permite a intervalos, dar pasto a vista em comerciais. Então o conteúdo de marca surge como possibilidade, mas não pode se estabelecer como no filme O Demolidor (1993 - Dir. Marco Brambilla) onde os jingles (em seu formato original) se tornaram produto cultural, suprimindo conteúdos.

Deste modo, o conteúdo passa a ser o novo subproduto das corporações. Uma espécie de venda casada que impulsiona o consumo, a venda e a absorção da mensagem. A partir de narrativas que remetem à raiz e história relevante para o público alvo, os conteúdos devem ser elaborados a partir da transparência, legitimidade, qualidade e irreverência, para que o indivíduo perceba que se trata de um conteúdo de marca, mas que aquela narrativa apresentada o proporciona uma reflexão ou um dado relevante para seu universo particular. Além de um produto, a moral da história. Por meio do conteúdo de marca a empresa espalha sua missão, vende seu produto e busca se integrar à sociedade de forma igualitária.

O conteúdo de marca amplifica as ideias além dos produtos. Essa narrativa trabalha sobre as premissas Desejo, Necessidade, Vontade; como no final da música dos Titãs “Comida” (1987 - composição de Arnaldo Antunes/Sérgio Brito/Marcelo Fromer).

O marketing então nesse cenário, assim como o jornalismo, se coloca no lugar das pessoas como uma delas, de forma verdadeira, fazendo a diferença na vida das pessoas a partir dessa ambientação. As narrativas são ambientadas, regionalizadas sem perder o link com o macro universo da sociedade. Semelhante foi feito no cinema com o livro de Ismail Kadaré que fala do Kanun, um código de lei de origem patriarcal que prega um loop eterno de vinganças e foi adaptada em Abril Despedaçado (2001 – Dir. Walter Salles) regionalizando a questão que aqui também se encontra. Essa dinâmica, quando aplicada por corporações, alavanca aceitação de conceitos, interfere em comportamentos sociais, dentre eles o consumo, favorecendo venda de determinados produtos.

O jornalismo assim permeia vertentes que podem representar uma nova ordem na organização da profissão e interferência na sociedade. O jornalismo também como instrumento para elaboração de um correto conteúdo de marca, que não se aprisiona na publicidade de convencer, mas no conteúdo de promover reflexão, interferência e poder de escolha; conviver. As narrativas pulsam, perpassam plataformas e linguagens e padrões sociais. Percebem a pessoa como indivíduo e sujeito social. Instigam e acalentam.

Pode-se afirmar então que essa narrativa conduz a interpretação do público, educando-o para relacionar o conteúdo não apenas a uma marca, mas a um padrão social que transcende paradigmas e valoriza ainda a cultura.

Para viabilizar o acesso frenético da geração contemporânea o streaming estabelece um novo modelo de consumo de dados. Milhões se entregam a este serviço como única ferramenta (Netflix 80 milhões de assinantes, Spotify 40 milhões, Apple Music 17 milhões). O streaming é o poder do instante. Vale mais o agora, o “enquanto eu acesso” do que o download. A apropriação do conteúdo muda. Não é preciso ter o arquivo, a informação, o produto, mas poder acessá-lo quando e como quiser. Assim percebe-se como se alastra o perfil colaborativo de mídia, criação e gestão de dados, e também de espaços (ex: escritórios Co-working).

O Youtube está para o mundo o que a Rede Globo foi para o Brasil durante décadas. Janela da realidade. No entanto, a grade livre do youtube é um ciclo que oscila, revoluciona e permite que cada um produza e consuma o que quiser, como quiser de onde estiver. Aparelhos filmam com qualidade, publicam e distribuem dados com rapidez. A produção barata impulsiona lucros.  Todavia, uma nova configuração de cobrança aponta nuances de um mercado jovem (internet) que reorganizou o modo de fazer negócios, de fazer política, de comunicar, de ser sociedade.


Narrativas palpáveis que entregam sentidos e promovam envolvimento. Assim, seja por streaming ou por conteúdo de marca, a comunicação segue atualizando formatos, plataformas e linguagens, alternando padrões e fluxos em busca de interligar seres humanos e mensagens.

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ao passar


Quando passar por mim, não me deixe seus poemas. Esses versos de quinas afiadas que rasgam o que toca. Quando me tocar, leve mais que meu perfume, deixe mais que seu sabor. Não permita que o suor das minhas ideias mudem seu gosto, outrossim misture-se. Seja.

Quanto tempo leva o tempo ninguém sabe ao certo. Mas o vento que passa deixa mais do que se leva. A leveza de um olhar, a doçura de uma voz, a força de um amor que sobrepõe lógica, regras e rimas.

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Ouço os pássaros ocupando a faixa no ar que lhe pertencem para comunicar. Ocupo meu lugar na rima, com os olhos voltados ao vento que afaga minha face, que sussurra em meu ouvido que algo partira, em todos os sentidos.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Novomesmo



Se todas as possibilidades na ordem e relação das forças já não estivessem esgotadas, não teria passado ainda nenhuma infinidade. Justamente porque isto tem de ser, não há mais nenhuma possibilidade nova e é necessário que tudo já tenha estado aí, inúmeras vezes. (Friedrich Wilhelm Nietzsche) .

Felicidade. Satisfação. O ser humano vive em busca disso. A sensação de estar satisfeito com a vida independentemente das circunstâncias, ser feliz. Para alcançar este estado, as pessoas definem os meios, muitos até o fim. O ser humano então pode ser compreendido como um animal que se move pelo interesse. Coloniza territórios e grupos socioculturais. Entretanto necessita de limites / fronteiras, físicas e psíquicas; do muro, portões, grades, paredes, até mesmo a roupa no corpo e uma ideia na cabeça.

A organização de um povo em sociedade busca viabilizar os fluxos entre demandas e anseios. Entretanto, a mão forte de um interesse muitas vezes sobrepõe os fluxos, desencadeando em conflito social. O Conflito social é o ponto de tensão para reorganização de uma sociedade e seus parâmetros de desenvolvimento e gestão. O pensamento político para ser eficiente deve conceber de forma madura o conceito de público, privado e compartilhado. Aplicando assim técnicas de gestão por resultados e equilíbrio orçamentário (como a iniciativa privada) tendo como beneficiário a opinião pública e o povo representado. Assim, a entropia gerada pelo conflito social viabiliza a ordem social. O sistema democrático é ineficaz em garantir satisfação do povo; ainda “amador” o sistema estaciona em uma entropia que mantém alguns fluxos definidos e conceitos e regras divergentes.

Neste cenário, instaura-se o populismo (em sua versão remodelada ou original) como mecanismo de gestão de uma massa que prefere o desenvolvimento estável e acesso a poder de consumo do que a democracia (fato recentemente constatado em pesquisa da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Estudo eleitoral Brasileiro (ESEB), mostrando que 62% da população estão insatisfeitas com a democracia e abriria mão da mesma por estabilidade econômica e social.).

Percebe-se assim que a sociedade não sabe o que fazer com a liberdade e poder que o processo democrático concede ao sujeito. O sistema político gera insatisfação, todavia a burocracia para a participação popular faz com que as pessoas fiquem estagnadas no trono da reclamação sem agir por meio dos mecanismos democráticos de pressão à gestão pública. O governo populista (do Estado Novo ao Golpe Militar) é marcado por aspectos como o carisma, a demagogia, o assistencialismo, principalmente em relação aos trabalhadores. Revolvendo-se a memória popular constata-se: No Brasil, o líder populista de relevância foi Getúlio Vargas (1930 – 1945/ 1951 – 1954), tendo a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) como maior legado, que formaliza na mão do Estado os direitos do trabalhador. A execução da famigerada política do pão e circo representa bem essa estratégia de governo que busca dar à população a ideia de confiabilidade, proteção, direitos garantidos e atendimento dos anseios coletivos e individuais. As ações populistas independem dos governos de direita ou de esquerda (em lados opostos, épocas diferentes, mas populistas: Getúlio, João Goulart e Leonel Brizola, Jânio Quadros, Carlos Lacerda, Ademar de Barros, Juscelino Kubitschek), mas amparam-se em personagens políticos e desdobramentos do respectivo modelo de gestão. Entretanto, é possível perceber uma incoerência no que tange a algumas práticas arbitrárias, que demonstram um progresso pautado pelo autoritarismo e supressão de direitos civis (disfarçada de proteção da tradição popular). A aparente inclusão social populista de certa forma alimentava a demanda que se propunha atender, em um processo alienante de promessas de construção de uma nação promissora, e pequenas ações efetivas.

A população durante muito tempo não soube identificar que estava sendo imersa em um sistema de configuração política alienante. Eleito era quem se destacava em carisma, ações assistenciais, demagogia e não em histórico e experiência política. Partidos políticos e programa de governo não eram decisivos no processo eleitoral.

"Mesmo dando a ideia de que os líderes populistas fossem “irresistíveis” não podemos deixar de dizer que certos grupos políticos também fizeram forte oposição a esses líderes nacionais. O crescimento populacional brasileiro e a abertura dos novos desafios conviviam com a polarização da política internacional, que dividiu as nações do mundo entre o capitalismo e o comunismo. Desta forma, grupos ultra-conservadores e setores de esquerda encontravam-se em pontos longínquos do cenário conciliador do fenômeno populista brasileiro. Comunas” e “reaças” eram representantes de uma tensão política que colocou, nesse mesmo período, a democracia em xeque. A ascensão da Revolução Cubana, em 1959, trouxe medo e esperança a diferentes grupos da nossa sociedade. Ao mesmo tempo, grupos militares instituíram a urgência de uma intervenção política que impedisse a formação de um governo socialista no Brasil. Viveu-se em uma economia que sabia muito bem promover a prosperidade e aumentar a miséria. Foi nesse momento que, durante o Governo de João Goulart (1961 – 1964), os movimentos pró e anti-revolucionários eclodiram no país. A urgência de reformas sociais viveu em conflito com o interesse do capital internacional. Em um cenário tenso e cercado de contradições, os militares chegaram ao poder instaurando um governo ferrenhamente centralizador. Em 1964, o estado de direitos perdeu forças sem ao menos confirmar se vivemos, de fato, uma democracia "(Rainer SOUSA).

O sociólogo Francisco Weffort defende que o populismo atua de duas formas ambíguas: como estilo de governo com interesse em atender pressões (demandas) populares e como política de massa forjando a ideologia de governo de forma autoritária. Neste contexto, o Chefe de Estado se confunde com o próprio estado sob o qual a massa se submete sem poder de questionamento ou interferência. O líder se faz protetor e algoz do povo. Este sistema no Brasil pode ser verificado até o fim da década de 70, mas a variação desse sistema, o novo populismo desencadeado a partir de 1980 carrega a essência e apenas varia nas plataformas de execução e controle do populismo.

O neopopulismo (1980) veio com o limiar da Globalização e flexibilização das fronteiras. Neste período, a privatização tão criticada, que surgiu como estratégia para redução da dívida pública, aponta incoerência do comportamento social. Esse último acreditava que o desenvolvimento econômico sobrepõe opinião e direitos sociais. O Neopopulismo, aliado a um neoliberalismo, gerou polêmica a adesão gradativa no país, com pontos de absorção espontânea pelo mercado investidor. No entanto, os diversos casos de corrupção do alto escalão da Nova República, envolvendo diversos patamares do Governo, aliada à frustração social das promessas de governo do então Presidente Mauricinho (Collor), fez com que Collor fosse afastado em 1992. Um marco em 1994 (Plano Real de Fernando Henrique Cardoso) e derrocada em 1998 (Instabilidade econômica e social de FHC). Diante deste cenário, faz-se relevante considerar o pensamento de Durkheim a respeito da adaptação do indivíduo ao meio diante dos fatos sociais (e suas características concernentes a Generalidade (padrão comportamental e de pensamentos comuns), Exterioridade (Fato intrínseco no indivíduo) Coercitividade (obrigação, papel social do indivíduo). Em sociedade, o indivíduo enquanto sujeito se mobiliza por ideologia (imposta ou trabalhada via agenda setting* ) e assim estabelece grupos sociais. As interferências desses grupos na organização social levaram o Estado a se reorganizar, saindo de uma posição ditatorial, para uma postura dita neoliberal, instituindo um neopopulismo.

Em sua obra, Durkheim aborda o Estado como órgão e o instrumento de uma nova sociabilidade, protegendo e regendo a sociedade rumo a um desenvolvimento. Considerando sua argumentação de que o indivíduo possui duas consciências (Individual e Coletiva) pode-se verificar pelo contexto social, que o populismo e neopopulismo atacam a consciência coletiva e a manipulam a partir de nuances percebidas de uma consciência individual adormecida.

Neste cenário, importante considerar as leituras de sociedade que fazia Zygmunt Bauman, com a sociedade da liquidez. O ser luta para ser humano em um cenário de valores e conceitos flutuantes, não perenes. A pressão por constantes mudanças favorece a cultura do esquecimento, onde tudo o que deveria permanecer e gerar marcos no desenvolvimento humano se liquefaz. A tecnologia neste contexto é um facilitador que superficializa a reflexão humana e seus padrões culturais. Paira no ar uma sensação de desconhecimento e fragilidade.

Contudo, o neopopulismo utiliza instrumentos que estabelecem na comunidade uma falsa sensação de liberdade e poder. O empoderamento e engajamento tão recorrente em discursos contemporâneos. No entanto, a consciência individual dos sujeitos parece chegar a um ponto de tensão, fato que evoca interferências na consciência coletiva e desdobra na divisão social do trabalho, com remodelamento dos papéis, mantendo a vanguarda em uma incógnita. O que farão os governos para conduzir a massa; quais as novas estratégias ou modelo? O que farão os sujeitos sociais enquanto indivíduos? Qual a configuração social do provir?

Referências:
NIETZSCHE. Obras Incompletas – Coleção Os Pensadores: seleção de textos de Gérard Lebrun; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; posfácio de Antônio Cândido – 3ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p: 387 a 397.

SOUSA, Rainer Gonçalves. "O regime liberal populista"; Brasil Escola. Disponível em www.brasilescola.uol.com.br/historiab/o-regime-liberal-populista.htm. Acesso em 19 de janeiro de 2017

DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia – a Moral, o Direito e o Estado, 1969 - Editora da Universidade de São Paulo, 2ª edição.

*Teoria formulada por Maxwell McCombs e Donald Shaw, o Agenda-setting consiste na hipótese de que a opinião pública considera mais importante em seus assuntos diários os temas que são veiculados com maior destaque na imprensa; sendo que as notícias veiculadas e o foco das narrativas são determinados conforme singularidades de quem detém o controle dos veículos de comunicação ou até mesmo a setores de uma sociedade.

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segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

(P) isca




Imagens diversas de um cotidiano que encanta e cansa apresentam nuances diferentes da personalidade humana e sobretudo uma característica comum: busca por reconhecimento.

- [ ] Não a famigerada procura por fama, mas a essencial busca por um olhar do outro que valide o comportamento e a vida de um indivíduo. Fotos nas redes sociais, notas em diários, conversas com desconhecidos na fila, no ônibus, no mercado; a dinâmica de entrosamento no bancos de igrejas, de escolas, o refeitório de empresas, os olhares de elevador. O ser humano e a busca pela validação de sua existência. Nesse processo, fere, é ferido, transforma seus objetivos em escudos de uma fragilidade de olhar a paisagem, e ignorar sua beleza ao insistentemente tentar registrá-la. A melindrosa caminhada pela superfície de dentro, essa terceira margem do rio que nos fazemos, crendo em um desaguar no horizonte.

As perguntas impulsionam. "Desejo, necessidade, vontade e representação", o humano a lutar assim para obter reconhecimento. Reconhecer-se além da imagem invertida no espelho, das fotos e traços. Reconhecer-se além da significação de seus gestos. Estar em sociedade, em saciedade e não na miséria (emocional, física ou espiritual). Conhecer limites e fronteiras, sem deixar de compreender os aspectos da flexibilização (famigerado bom senso). Participar da paisagem, sabendo que para haver centro, há margem. No entanto, quando há fluxo social que promova integração de direitos, deveres e acessos centro e margem são apenas pontos de referência oscilantes, conforme instante e viés que se observa tais fluxos. 

A caverna nunca foi tão grande e multifacetada, e as sombras nunca fascinaram tanto o olhar como agora. Onde paira a liberdade? Aprender novamente a conhecer e reconhecer. Sendo.




sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Individuus


 

 
A organização social contemporânea impele ao indivíduo um comportamento de egocentrismo. Para coexistir o ator social com esse perfil precisa de público e referência, para então impor suas singularidades, legitimando-as como objeto de consenso ou bem-estar social. Importante considerar a etimologia; do latim medieval individuus (indivisível), que é formado de in + dividuus. O vocábulo dividuus vem de dividere (dividir). O processo de formação de indivíduos compreende interferências da sociedade, ou seja, depende das relações sociais e culturais (variando o grau de intensidade), formando assim a identidade do ator social.

A construção da realidade social passa pelo interesse. Interesse constituído pelas vontades, necessidades individuais, e pelo consenso coletivo subsequente. O sujeito está cada vez mais centralizado como ator social individualizado, interferindo na Rede Social para apenas atender seus objetivos, isso até mesmo quando demonstra nuances de altruísmo. Este aspecto fica latente quando consideramos a leitura que Adorno faz do indivíduo em sociedade, enquanto sujeito, onde por mais que submete-se a fluxos impostos por uma liderança social, ele executa suas escolhas tendo como motivado os próprios interesses, as respectivas singularidades.

A cultura de massa impõe um padrão cultural e um modus operandi da sociedade concebida como um corpo, mas não consegue controlar totalmente os membros deste corpo, sendo os indivíduos os referidos membros. Fato que aponta uma fragilidade e uma força em toda organização social: um membro pode atrofiar o corpo social e corromper a ordem imposta, mas para ser eficaz ele precisa de aliados, formando assim um novo grupo, que precisará de regras gerais consensuais, estabelecendo então um paradoxo, onde para atingir interesse de suas singularidades, o ator social precisa tornar coletivo algo que é individual. O epicentro do conflito neste caso não é o interesse, tampouco o individualismo, mas o controle. O que antes era exercido pela força física, agora materializa-se nas entrelinhas de narrativas midiáticas e na ressignificação dos padrões.

Cada sociedade/grupo social possui seus padrões de saciedade e felicidade. O que outrora foi medido pela saúde, dentes, capacidade física, passou a ser por meio da posse de bens materiais ou mecanismos de poder (Mercado / Autoridade / Mídia / etc.). Assim, a construção da realidade social ultrapassa os aspectos da singularidade do sujeito, pois está ligada à interação dessas singularidades com a paisagem formada por oportunidades e demandas.

A globalização estimulou a integração de padrões territoriais de modo a possibilitar o diálogo de “tribos”, de suas demandas, anseios e oportunidades de saciá-las além fronteiras; considerando demandas e anseios nos aspectos culturais, econômicos, intelectuais, de subsistência e desenvolvimento.

Neste ínterim, a arte e suas diversas concepções, tornou-se instrumento essencial de manutenção dos padrões sociais; tanto para reafirmar quanto para romper paradigmas e sobrepor dogmas. Desta forma, a noção de identidade de um ator social depende de suas singularidades enquanto indivíduo e de sua interação na paisagem social, perpassando pelas influências em “si” dos produtos culturais que consome, acessa ou até mesmo reproduz. Isto pode ser observado nas dinâmicas de apropriação e ocupação territorial e interações consequentes, definindo regras e limites, espaço público e privado. Portanto, percebe-se cada vez mais que identidades culturais volúveis e segmentadas tomam lugar de destaque social ante as identidades culturais tradicionais, fato que evoca mudança na maneira de transmitir a história a gerações futuras.

Faz-se então relevante analisar o “Agenda-Setting” e suas reverberações na organização social, pois assim renovam-se identidades culturais volúveis e respectivos relacionamentos descartáveis. Teoria formulada por Maxwell McCombs e Donald Shaw, o Agenda-setting consiste na hipótese de que a opinião pública considera mais importante em seus assuntos diários os temas que são veiculados com maior destaque na imprensa; sendo que as notícias veiculadas e o foco das narrativas são determinados conforme singularidades de quem detém o controle dos veículos de comunicação ou até mesmo a setores de uma sociedade.

Indivíduos ditos pós-modernos apresentam-se em constante movimento em busca da identidade própria, seguindo tendências, outros repetem a receita dos padrões culturais vigentes e há ainda os de vanguarda, que se constituem solidamente, sendo ainda flexíveis evolutivamente e não volúveis apenas pela efervescência da mudança.
 

encantamento


O túmulo dos vagalumes é o olhar que por último os viu. Vemos sem perceber, nos esbarramos sem ao menos sentir completamente o que fica daquilo que passa, e o que foi levado do que sempre esteve aqui. Beija-flor persiste mesmo durante a chuva de mais um dia tão incerto. O coração flutua na chuva, ele chove com ela. Os traços de dias chuvosos registram a mudança do nosso caráter frente aos sentimentos. 

A poluição da paisagem, imposta pelos padrões de desenvolvimento, de felicidade, de sucesso, espantam os vagalumes da noite, empurram beija-flores para voos em dias chuvosos. Dias em que as notícias chamam mais atenção que as flores, balançam mais que os fios à brisa que marca a intermitência da chuva.

O encantamento é berço de um renascimento. Quem encanta tem assim não uma responsabilidade maior, mas uma especial virtude, de renovar algo na paisagem.

água na boca

Várias faces de uma mesma narrativa. Escorre no rosto uma gota. Água nos olhos, água na boca.


Imagine um corpo na água. Um animal na praia. no mar. Tentando se manter à superfície. A água bate em seu rosto, cansa suas pernas, ofusca sua visão, salga sua boca, resseca por dentro. O visual é lindo, o frescor é maravilhoso sob um sol intenso. Mas o corpo não consegue flutuar. Cada vez que afunda, volta desesperadamente para buscar um pouco mais de ar, pois tinha que respirar.

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Essas gotas que escorrem pela parede do banheiro durante um banho. Gotas que se dissipam em vapor. Gotas que errantes se juntam a outras e tornam-se mais rápidas, maiores, fortes, descem rapidamente rumo ao chão. Gotas estacionárias, que pontuam a parede com um novo brilho, com fragmentos do reflexo de um corpo que cala, resvala no abismo dos sentimentos. São ombros nas ruas, são pessoas em sociedade, fragmentos de sonhos em choque com expectativas.

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Sempre que chove  acredito que acontecem algumas mudanças, como em Shell Beach; físicas e metafísicas. Contudo, coisas mudam todo o tempo. Hoje choveu dentro, fora. Sentir a chuva é mais do que se molhar. Nas intermitências das nuvens, o choro também é chuva. O sol tocou suas pétalas com uma delicadeza que eu não havia percebido antes. O brilho na gota isolada na folha, na pétala, nua. Essa paisagem me tocou, me integrou a ela pelo olhar. Um olhar puro, uma paz que refrigera, revigora, revela a mim, mais uma vez, minha pequenez.

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Penso em despetalar teus lábios, arrancar teus suspiros e inundar meus sonhos de realidade e renovo. Essa sensação de arrepio que faz seu corpo contorcer sou eu a percorrer você, dos seus montes aos seus vales, fazendo florir seus lírios e jorrar sua fonte enquanto seu corpo contorce de forma quase contida, como quem descobre uma nova dimensão, tenta se controlar, mas sucumbe a uma energia que transcende sua lógica. Salivo a esperança de nos misturamos mais a cada dia.

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Felinos




Cultivava a diferença. Era o que sentia em suas veias. Era o que fluía em seus gestos. Não conseguia deixar de contaminar as pessoas com a leveza de olhar a vida. Eram rosas diferentes. Eram sabores diferentes. Eram pessoas exóticas pela peculiaridade de serem únicas. Ele não conseguia ser impessoal. Envolvia-se por completo, com intensidade, muitas vezes sem a devida sanidade, mas a pujança de um sentimento sem amarras, sem lógica, sem falsidades. Assim ele conseguia as marcas, pintura rupestre na derme, o tempo que passa revelando momentos de gozo e de dor.

O ritmo da caminhada. Impossível definir se é o prenúncio da fuga, da caça, ou de uma jornada compartilhada. O que há no olhar dos felinos? Hipnotizantes, sóbrios, poderiam eles nos falar sobre as consequências da vida? Explicar os desdobramentos das escolhas? O olhar de um cão compartilha do mesmo espaço tempo, troca emoções e percepções do presente, o dos felinos parecem vir de um tempo onde sabem o que somos, para onde iremos, e o que sentimos. Há felinos de olhos azuis, castanhos, verdes, que brilham, que ferem e afagam. Sempre instigam.

Certo como a luz do sol a passar pela fresta da cortina e se instalar sobre a mesa. O sentimento não era de dúvida. Tocou a mão dela e apertou por uns instantes, de modo intenso, com carinho, com desejo. Ela respondeu ao toque, não importava o significado, tampouco o porvir, valia mais o momento que experimentavam ali. Ela o olhava no escuro, entremeio flashs de postes, com um brilho nos olhos. Ele a olhava com ternura, segurando-se para não unir os poros, os lábios, os destinos.

Os ponteiros e o fatídico "mas" interrompeu aquele encontro, sem selo, sem ponto. Deja vu. Assim como cada qual vivencia diversos desses momentos em particular universo, eles tiveram novamente o seu momento. Complicado. As leis da física não consideram o poder da vontade e a interferência do pensamento. A memória construiu-se então de uma série de momentos que pela sutileza delineiam um sentimento que enobrece o olhar, o suspiro, a libido. O tempo apura este sentimento cada vez mais. Complexo.

Quando o exótico atrai pela diferença, pela inquietude que gera. Como um filme de Almodóvar integra ao nosso olhar um tom de estranhamento aos padrões sociais. Assim, os dias se renovam nesta orgânica festa que gira em torno da estrela.

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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

polegares em riste



Geração dos polegares frenéticos. A dor de polegar tem incomodado mais do que a de cotovelo. Pescoços baixos fazem reverência a uma privacidade que brilha intermitentemente nas telinhas às mãos. A ergonomia é o novo desafio da saúde ocupacional, pode-se dizer que em determinados cenários sobrepõe até as famigeradas receitas de uma alimentação saudável. Todavia, esse recorte do comportamento social é a reverberação da mudança do processo de comunicação. As plataformas de produção e consumo de conteúdo, com suas multiplicidades de funções, acessibilidade e formatos, interferiu na postura moral e corporal dos indivíduos. Mudou a postura do corpo e a postura dos indivíduos na sociedade, uma vez que foram empoderados no processo de comunicação, podem postar, compartilhar e até mesmo interferir em pautas e respectivos desdobramentos. A responsabilidade social já não é apenas um jargão corporativo, mas a premissa para interagir socialmente  seja como indivíduo ou como representante de um grupo ou empresa. Aqui não se limita a concepção de responsabilidade social a ações de filantropia, mas de desenvolvimento integrado justo, e responsabilização pelos respectivos atos em sociedade.

Nova Ordem Mundial. Aplicativos a mil. Mensagens trocadas, arquivos que vazam de propósito, ou por incidentes, acordos firmados, registros apagados, rastros polemizados no judiciário, manifestações de bites, amores por código binário, traições por caracteres, transformação social digital, baterias viciadas, pessoas libertas de paradigmas, a rede que se renova e expande imitando o movimento do universo, com colisões, explosões e novos mundos; a beleza orgânica da vida na matriz do tempo.
Roger Bolton (referência em Relações Públicas do setor industrial nos Estados Unidos) disse que a contemporaneidade nos encurralou em uma máxima conhecida desde os tempos de academia: Temos que melhores naquilo que já éramos bons. A geração millennials alastra-se na contemporaneidade (jovens, empreendedores, irreverentes, desvinculados a padrões tradicionais, mas comprometidos com problemas de ordem global, com a efetiva sustentabilidade, de produtos e processos, inclusive de relacionamentos interpessoal e institucional.

Neste sentido, é preciso agir de forma simultânea às mudanças. Fazer a leitura da paisagem, considerar seus recortes e a interdependência e desdobramentos de tais recortes. É compreender como as pessoas se comportam nas Redes Sociais Digitais, nas Redes Sociais Orgânicas (Grupos sociais - escola, religião, lazer, cultura, esporte), a maneira que produzem e consomem mensagens, observar como concebem e percebem os espaços que ocupam, os produtos e etc. Simultaneamente, deve-se entender o respectivo lugar (do comunicador) e função na paisagem e ser volúvel (sem ser leviano)no ambiente, lançando mão de atitudes de vanguarda para interferir e também do mimetismo para aceitação e reconhecimento.

Além de estabelecer um novo modus operandi na comunicação, as novas mídias (se utilizadas de forma equilibrada) expandem as fronteiras da evolução humana e flexibilizam distâncias físicas e intelectuais para estabelecer aquilo que entendemos como um mundo melhor agora.

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sexta-feira, 23 de setembro de 2016

predicado



Por que o porquê? Porque condena-me. Porque condena-me por cometer as mesmas práticas que você. Somos iguais, em posições opostas. Nem paralelas, tampouco intercessões. Somos dois pontos entre muitos. Desafios de sonhos tecidos no ar; pairamos junto às descobertas. Porque amamos sem amarras.

O sopro leva mais que o vento. Quando meu olhar atravessa a janela, não ganha voo, mas despenca, brilha e desaparece. Quando parecia não haver espaço e tempo para um respiro, para reflexão ou refração, eis que surge uma nova dimensão. O tempo continua a passar, mas, inacessível; o indivíduo pode então se encontrar. Vi o sol se pôr. Entre as árvores, em contraste aos sentimentos. Esse momento do dia tem uma luz, um clima, que mergulha a mente em uma reflexão tão peculiar em seus efeitos. Amarelo, laranja, azul, branco.

Se isso é o céu a letra voa,
o coração ressoa
e seu olhar chove em mim.
sem me molhar
eu te sopro

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sexta-feira, 9 de setembro de 2016

entre jardins



O que nos faz caminhar à terceira margem do Rio? Os sentimentos que lapidam nossa identidade ou a atrofia provinda de um cotidiano que soterra o indivíduo com tantos padrões? A música é mais do que um ritmo a movimentar corpos. A música transcende nossos pensamentos, sonhos e flagelos. Ela é capaz de nos libertar, ferir e confortar; compreender e questionar. Em alguns dias, ela pode até mesmo transportar nossa mente para longe de uma realidade exaustivamente sufocante.
Seja a partir das linhas libertadoras de Guimarães Rosa e as diversas possibilidades da terceira margem deste rio chamado realidade, ou no transcorrer de Severed Garden de Morrison, a mente fica inerte enquanto reverbera no corpo um pensamento transformador. O que “si” busca? Seja se encontrar, estar em paz ou até mesmo feliz.

A famigerada felicidade em sua utópica plenitude não deve ser considerada sobre os aspectos dos rótulos sociais presentes nos mecanismos de consolidação de padrões sociais (Escolas, Mídia, religião e famílias). O tão proclamado “conheça-te a ti mesmo” é fator determinante para alcançarmos o que sacia nosso coração e mente.

O processo de autoconhecimento nos possibilita aperfeiçoar a maneira como analisamos as oportunidades diárias, interagimos com o ambiente e rascunhamos o futuro nos gestos do presente. Simultaneamente, nos relacionamos com outras pessoas e interferimos na vida delas na mesma medida em que elas influenciam a nossa. E algumas pessoas são tão especiais, que transformam silenciosamente e permanentemente nossa vida. Independentemente do contato, estão sempre próximas, caminhando entre jardins e margens de nós mesmos.

Nesta noite, ouvir the Doors é se permitir a momentos de introspecção. Não uma apologia a rebeldia, drogas e sexo sem limites, mas uma argumentação a respeito dos paradigmas da sociedade, dentre eles o amor e a percepção da realidade. No compasso do pensamento, o ritmo dos sentimentos intensos. Com letras que vão desde a simples manifestação de um desejo, à possibilidade de refletir a respeito de significado e significante das coisas, as canções da banda evocam experiências interessantes para o imaginário de quem ouve com atenção.

Ouvir “Severed Garden (Adagio)" - canção estruturada a partir de poema gravado por Jim M. em dezembro de 1970, criada como música após a morte dele sobre uma recriação para “Adagio", de Tomaso Albinoni; é entregar-se à introspecção de rever silenciosamente nossas referências, valores e a respectiva relevância de escolhas e atitudes; desde o modo como observamos uma flor, lidamos com riquezas, reconhecimento, até como percebemos os aspectos e incertezas do relacionamento com os outros e até mesmo com a morte.

Neste ínterim, não é raro nos encontrarmos em busca de uma miragem. Seres humanos são fábricas de miragens. Alguns dizem que a busca pela miragem é o que move a sociedade e possibilita sua evolução. O foco na busca contínua, e não no alcançar. Entretanto, esse processo alimenta ferimentos e cicatrizes permitem a leitura em braile de nossas fragilidades; reféns de sonhos in natura. Há quem diga que se materializarmos aspectos da miragem na realidade que se apresenta palpável e perceptível (longe de ser concreta) conseguiremos estruturar um efeito placebo para vivenciar os dias com mais leveza.


Não podemos apenas nos entregar aos padrões vigentes e deixar que eles anulem aquilo que nos faz ser único; nem melhor, nem pior, mas especialmente único. Devemos nos abster da comodidade de catalogar tudo o que acontece como algo rotineiro. O comum é tão perigoso quanto a arrogância dos donos de verdades, ou controladores do processo de divulgação de versões. Alimentamos muitas vezes a característica que mais condenamos. Corpos destroçados, lares profanados, carteiras roubadas, espaço público tratado como a residência do caos, senso coletivo concebido como bacanal social. Na rebeldia não há poesia; há sangue. Alguém sempre verte sangue, nem que seja cortando o dedo com papel. As cenas brilhantes de filmes violentos, onde o espectador torce até mesmo para o inimigo público, não se limitam à sétima arte. Elas sumarizam os jornais, aterrorizam nosso dia a dia. Contraponto. Crianças espontaneamente boas, cordiais; casta superior quando exala humildade. Elas vão além da soberba dos adultos em dominar e impor verdades. A ambição de sorrir. Elas são delicadas flores perfumadas em um jardim; e cada qual tem seu jardim, que une e nos separa uns dos outros.

Textura, movimento, sabor e ternura. As experiências que um jardim evoca no indivíduo vão além de aspectos visuais e conceitos erguidos em versos. Encontramos aconchego não em lugares determinados por padrões sociais, mas essencialmente onde nos toca a alma. Alcançamos e somos alcançados pela paz quando livre de amarras nos envolvemos no suave emaranhado de possibilidades de ser feliz.

Os pensamentos estão postos. Despertar é uma palavra-chave muitas vezes inserida em fechaduras erradas. É preciso foco para persistir; mais do que saliva. O interesse. O fruto que geramos e que somos. As ações que exemplificam nosso caráter. Relacionamento e confiança são mais do que lembranças, ou palavras soltas em uma camiseta. Para alguns é moeda de troca, para outros é fundamento divino.

“Não há amor possível quando se busca a miragem e não a pessoa concreta que se tem diante de si”. (Sérgio Abranches, in 'Que mistério tem Clarice?').

Será?

“I want roses in my garden bower, dig?”

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terça-feira, 16 de agosto de 2016

Sujeito



Há momentos em que não tem como conter o que há em nossas mentes. Narrativas emergem do solo, ambientam as frases em nossas bocas. Um bom companheiro, um bom livro é aquele que te livra das imagens vistas pelos olhos, pela pressão encontrada no ambiente de trabalho, ou familiar. Um livro que é mais do que uma janela, mas um portal para uma dimensão particular de cada leitor. A estante estende seus braços e entrega um exemplar, velho conhecido, de ficções de certo interlúdio.

Subiu o monte de sua infância como quem estava firme. Seus pés afundavam, seus joelhos rangiam, mas ele não parava. Seguia satisfeito pela sensação simples de respirar.

O desfiladeiro deixou de ser poético quando as palavras foram arqueadas como sobrancelhas daquela que se fez algoz de qualquer nobre sentimento. Seria mais simples ter dito o que ela fez e as consequências de seu gesto, de forma clara. Contudo é mais aprazível confeitar as frases com o sabor meio amargo das emoções, salpicadas de realidade. Todo lampejo de amor, toda faísca de sinceridade e pureza pode matar pela dose, pode curar pela intensidade, pode nos fazer transcender pela perenidade desprovida de intenções planejadas, mas embebidas de espontaneidade. Essas letras contorcidas em versos são lágrimas. Caminhamos então à face do abismo. O prenúncio do colapso passeia ao lado de nós dia a dia. Alguns momentos de alívio vêm de vivência em família, filmes, passeios, bebidas e comidas. No entanto, o tempo sempre dobra e essa hora torta sempre aperta o coração do indivíduo contra o reflexo que não se reconhece ao espelho.



“Porque sueño, yo no lo estoy.
Porque sueño, sueño.
Porque me abandono por las noches a mis sueños, antes de que me deje el día.
Porque no amo.
Porque me asusta amar, ya no sueño.
Ya no sueño.
Ya no sueño, ya no sueño. Léolo

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

o antes que se esvai

 
Desde cantares a tudo o que se comporta nos ares apaixonados. Nas rimas, nos olhares, anseios. As histórias de amor admiradas, buscadas, acreditadas e desacreditadas. O Humano deseja a saciedade e pujança que o amor proporciona dentro de si, não apenas no coração, mas em todo o corpo, perfazendo em eletricidade uma sensação de êxtase.

Cada tentativa clama por materializar os mais infantes desejos de se lambuzar na sensação de felicidade e entorpencência do amor.
Formosa, intensa. Rompeu a terra rumo ao sol, desdobrando-se em folhas, caule, rumo ao broto, ao botão, para ser flor. Amantes. Rompem a haste para levar a flor para sua amada. A flor desperta sorrisos espontâneos, espasmos de uma felicidade que até deixa um rubor à face, o perfume da flor se instala como lembrança de versos de amor. Contudo, a flor murcha ao tempo. Tempo. Esse que passa, esse que fica em marcas.

Perpassar “Como eu era Antes de Você (Me Before You, 2015)” o filme ou o livro de Jojo Moyes é se divertir com o clichê da sutileza rompendo pela insistência a rigidez. Assemelha-se à flor que rompe o solo em busca do sol. Após encantar pelo olhar, dissipar-se pelo perfume, lançar-se pelo pólem, ela retorna ao chão, murcha, para o adubar. Água mole pedra dura, olhar singelo coração seco. Todos, mesmo que em silêncio, traçam suas expectativas quanto ao roteiro, vislumbrando um final feliz. A conceituação de felicidade embora ambígua em sua constituição de fatos é simples em seu fundamento de sensação (paz, saciedade, esperança e energia). No entanto, a história nos apresenta às escolhas. Neste cenário, e em tantos outros, para o indivíduo alcançar um determinado altruísmo romântico às vezes é preciso abrir mão de se estar com o ser amado. Ele queria que ela experimentasse uma liberdade que era pujante em seu corpo, seu modo de vestir e de ver a vida. Ele sabia do frescor do vento que vem e passa. Ele queria que ela deixasse de se sacrificar pelos outros, e sem desculpas para se castrar, pudesse voar. Mas para isso ele deveria sair da paisagem, para possibilitar o verdadeiro voo daquele pássaro colorido que sorria para ele todas as manhãs. Então ele não poderia vivenciar. É como apenas vislumbrar a terra prometida. Ao escolher o presente, ele não quis encantá-la pelo luxo, mas surpreendê-la com algo que realmente a tocasse, que não só ela desejava, mas que retratava parte de sua identidade. Ele a presenteou com meias de abelha, ele a presenteou com a liberdade das possibilidades.

Lembra bem o fim de O Predestinado (2014 - dirigido pelos irmãos Michael e Peter Spierig e baseado no conto All You Zombies de Robert A. Heinlein), quando para alcançar seu objetivo (acabar com o Terrorista e a sucessão de seus atos) ele deveria abrir mão de suas convicções e sentar ao lado do ser perseguido (pois matá-lo era se tornar o terrorista). A reflexão é maior que o texto e o transcende (Vale a pena assistir Transcendência - 2014 - com o Johnny Depp). Pois de maneira sutil acena para um pensamento que revê as nuances do amor e fundamentos que modulam nossas escolhas, expectativas e apetite.

O que estamos dispostos a fazer para alcançar os objetivos? Rever a lógica e a base estruturante da nossa identidade? Questionar nossos limites e expandir as fronteiras?

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sexta-feira, 29 de julho de 2016

tato

Lanço-me
leitura em braile
as ranhuras de teus lábios
com a língua.

Delineio teu corpo
com a boca,
aquecer teus vales
fazer florir orquídeas
exalar o perfume dos lírios
entrelaçar palavras
formando frases multifacetadas
de uma mesma narrativa

desenhar uma paisagem leve
sonhos encaixados à realidade
contemplação e tempo
que passa e leva-nos
nus
sós


...

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Beija-flor

 
 
O clichê flor e beija-flor, a rima que atravessa poemas, fábulas e fotografias. Canções e emoções estruturadas no gesto natural de retirar da flor o néctar, deixar nela pouco de si (saliva) e prosseguir em um livre voo de precisão. A harmonia das asas no ritmo dos pensamentos; o tempo que transcorre as dimensões de um observador, de um semelhante, de si mesmo refletido no espelho d'água.
 
Suas aparições quase que sincronizadas. Seus olhares quase coincidências, evidências de uma harmonia que precede nossa percepção, nossa intenção e sentimento. A flor, com a textura de suas pétalas, os contornos de seus órgãos, a intensidade de seu perfume, a composição de seu encanto. O vento mensageiro indica a localização, o beija-flor encontra, reencontra e leva na sua liberdade o que o alimenta; o que o faz ser especialmente único; para ela, para si.

Seu voo tem pausas como as mais belas canções. Seu canto encanta pela sutileza. A presença dele em um jardim traz paz e admiriação. Se borboletas são flores com asas, o beija-flor se faz um poema em movimento, no jardim do secreto imaginário de cada um.

Semelhante a tantos; às vezes sinto falta de um tempo. Um tempo em que a brisa fazia mais efeito do que sentido. Muitos se sentem como Léolo, ou seu irmão. Assim é a vida tal como o tempo; ora imponente, ora sutil. Hora que passa, séculos que se sobrepõem, minutos sorrateiros, segundos que não cabem o sentimento que implode no peito.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Espório


Não percebia o peso das frases lançadas, pois o som no ambiente a fazia sentir o tempo em uma cadência especial. Era como se ela tivesse encontrado um espaço entre as membranas da realidade, onde a sanidade não a podia alcançar, tampouco os devaneios de um coração inquieto. E todo trapo, todo guardanapo com poemas e sorrisos virou uma canção de ninar, que toca intermitentemente durante o dia e na sublime madrugada.

Seus clichês caminhavam silenciosamente pelos becos de cidades históricas, pelas ruas movimentadas de seres impessoais, por trilhas que desaguavam no sossego e por rugas de sua infância. Atordoada pelas peculiaridades do ser humano, ela não se preocupava mais com as perguntas, ou com as respostas. Apenas se concentrava em como as reticências poderiam mudar sua vida. Mudança é algo constante, até mesmo no tédio. Entretanto, mudança não era o que cativava seus suspiros. As repetições das relações e passos humanos. Os ciclos não a perturbavam. Ela estava fascinada pela sutileza das flores; pela textura das pétalas, o contorno, o sabor do aroma e o potencial de encantamento.

Ela estava inerte na realidade. Como se encontrasse um lugar especial entremeio a tudo, interligado, intocável. Em um momento em que buscava nada, nem compreensão, nem paixão, nem dor ou gozo.

Era injusto ela não ter um abraço e um colo para ser recebida. Pior ainda era não se sentir bem no colo e braços que possuía. Ser ingenuamente meiga e espontaneamente cruel era sua credencial do amor.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

ritmo



Sãos os passos, não as pegadas, que carregam um pouco do que somos. À beira do desfiladeiro, as pegadas dizem que irei voar, os passos fazem-me contornar as nuances do abismo, ouvindo o eco, sentindo a brisa insinuar a impossibilidade, tentar me empurrar ao eterno retorno das pegadas; mas não me pertence a volta, nem o voo, pois estou imerso nos rumos, sou refém e algoz dos passos. Meu corpo pulsa meu desejo de sucumbir às mazelas humanas e em ser o melhor de mim para os outros.
É a suavidade do seu olhar; a inocência da sua face semeando em mim as melhores características do ser. Assim nascem meus passos, nas intermitências dos meus pensamentos, das consequências das escolhas e de como as escolhas dos outros.

É a terra entre meus dedos; sinto a textura do chão e a temperatura do solo que não me aceita como semente, que me repele e impulsiona a caminhar. E essa caminhada me liberta e aprisiona aos passos.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

caminhos e percalços


Os raios de sol iluminam o rosto em uma manhã fria. O chão recebe passos que instintivamente caminham até a K-pax peculiarmente particular de cada um. Lugar onde pode-se entregar ao aconchego de se resguardar e até mesmo enfrentar as próprias aflições sem interferir no ambiente ao redor, fora de si. Entretanto a interação é inevitável, pois quando um corpo ocupa um espaço, ele o altera, mesmo que sutilmente.

Sensações delineiam as expectativas desde o início do dia. A liberdade de puxar o ar fresco da manhã o faz sentir vivo como um pássaro. O voar não lhe é um fardo, tampouco o gorjear sua sina e o semear uma prisão. As asas que perpassam o vento, dedilham no ar os sonhos mais tênues de um tempo que ainda não foi registrado. Ele beija a flor que o encanta.

Na construção da respectiva trajetória, perpassamos os fluxos dos outros, interferindo mesmo quando passamos por despercebidos. Andarilhos de interligações de um labirinto de fim desconhecido, nos movimentamos. Idas e voltas, transgressões de paredes, descoberta de novos corredores e sempre a mesma ideia de destino. Observando os caminhantes, percebemos o quanto somos, iguais, semelhantes, diferentes, únicos. Seja em um ponto de ônibus, na rua, ou escritório. Todos juntos em um espaço, todavia separados por infinitos. A mente em espaço e tempo diferentes, cada uma com a trilha sonora que lhe apraz. A interação de silêncios e de olhares vagos enquanto aguardam um certo agora, a próxima deixa.

Os fones de ouvido podem até agredir o tímpano e os cílios da cóclea, mas eles também nos protegem.  Nos exime de interações indesejadas no cotidiano, nos protege enquanto sonhamos acordados com sonhos difíceis, mas não impossíveis (depende do tempo e do passo), nos abstém de ouvir argumentos que ferem ou que provocam repulsa; permitem trilha sonora instantânea nos simples momentos do dia a dia. De certa forma, são instrumentos de paz e de guerra, prisão e liberdade.

Vermelha*, esta noite a lua sangrou meus lamentos, minhas palavras silenciadas, meu choro estancado; e desdenhou do amor pujante de meu coração, latente em minha alma. Brilhante, ela iluminou o orvalho com a esperança de inquietude e caminhos diferentes.

 *Lua de Morango, a cheia de Junho.
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