Cruzamento




A música estava em seu sonho. O chinelo estava em seu devido lugar. Acordou no horário de sempre; comeu pão com manteiga e duas xícaras de café. Despiu-se  da última noite, vestiu o uniforme social, pegou a pasta, pegou a Bíblia e as chaves do carro.

Da garagem à esquina tudo estava parado. O movimento começou conforme os dias anteriores. Alcançou o cruzamento, parou. Na extremidade lateral, à direita dele, outro carro também parou. Eram únicos. Não havia pedestre, não havia trânsito, mas eles desligaram os carros e ficaram imóveis.

O sol intensificou o calor, os pedestres saíram a atravessar faixas, o trânsito surgiu com todo o fluxo frenético. eles não se moveram. Mulheres cuspiam mentiras nos lares, traiam maridos, maridos aos bares matando o fígado, maridos feridos no trabalho operário, maridos suados sobre mulheres alheias, sobre almas falidas, esposas suadas com rodo e vassoura, o balde das ilusões derramado ao chão. Crianças atrás de bolas, crianças pelas ruas fumando pedras, ervas perfumam as rodas de conversa, o perfume das meninas mexe com os meninos. Os jornais com a crescente violência estampada; compromissos não cumpridos, subterfúgios à corrupção. Os fatos estão dia a dia mais árduos.

A vaidade e o desejo vão, desde o chinelo até a gravata. Semáforos mandavam nos homens, motos derrubavam seus pilotos. O hospital entupia a veia dos angustiados fisicamente. Eram remédios; castigo para restabelecer a saúde e prolongar a vida. O banco e o dinheiro virtual saltitante, o dinheiro de papel, de metal, de plástico. Depósitos de desesperanças. Copos e corpos espalhados pela cidade. Chuva.

Floridos jardins, com algodão, paina e rosas. Jasmim Gardênia e seu cheiro intensamente suave, a lanterna chinesa, os ciclos completos. A orquídea de um dia, a beleza, o renovo. A luz.

Continuavam parados e ignorados. Retirou um sanduíche do porta-luvas e comeu com calma e ingenuidade. O outro, retirou um chapéu e o colocou na cabeça, pegou uma garrafa de café sob o banco do carona e se pôs a beber. Satisfeitos.

Televisores piscavam iluminando em flashes cômodos de solidão, reunião, comunhão ou relaxamento. Refeições uniam famílias, amenizavam a miséria sob pontes. A ponte oferece proteção, possibilita transpor limitações físicas entre dois pontos; a ponte pode um dia cair sobre as cabeças e soterrar a miséria humana [psíquico social]. O cruzamento é mais do que uma solução ou canção de blues, ele é um entrave. É a estática da ruptura. Escolha.

Este guardanapo, este trapo de realidade lançada sobre mim.
O pensamento me dissolve em teus lábios.
Teus olhos lacram minha esperança. E nossa liberdade caminha de mãos dadas
Senti minha pele dobrar sobre a sua.

Pinhole virá a revelar muito mais do que as identidades...

O sol confirmou a passagem de tempo, mas eles não se importavam. Imperceptíveis, saciados de realidade, desfrutavam da brisa que fluía dentro dos veículos lacrados. O sorriso escancarado era o prenúncio da chuva. Dentro. A insolação humana. Fora. Na extremidade à direita daquele cruzamento, cessou a chuva e começou a nascer ramos. Ramos com espinhos. Espinhos como degraus para rosas. Não mais se via dentro, via-se apenas as rosas. O perfume envolveu a todos pela cidade. Todas as palavras daquele dia ganharam mais sabor, os olhares mais cor e os sentimentos mais intensidade; ainda assim não se instalou o caos.

O carro não era mais visto lá. A extremidade à direita estava vazia. Observava-se rosas ao chão. Depois da chuva, ele saiu do cruzamento.

Pinhole virá a revelar muito mais do que as identidades...




Nenhum comentário:

Postar um comentário