sábado, 30 de janeiro de 2010

Inspirados




Botas na lama. Fuzis ao ombro. Chuva escorre pelo rosto e mistura o suor. Salmoura. Ele, filho da mais alta patente das forças armadas. Mas a honra de seu Pai não era a dele. Começou ele como o menor no exército, mesmo tendo conhecimento e treinamento superior, se fez o menor do grupo. A xepa era seu soldo maior. Sua cara beijava o chão, seu sangue rompia as veias, os músculos se contorciam à noite.


Durante o treinamento, levou a culpa pela desobediência dos outros. Foi traído pelos colegas de alojamento. Flexões. Reflexões. Cresceu em obediência, fazia tudo o que lhe cabia e ainda mais. Ajudava os outros. Colaborou com os colegas que tinham fraquezas, foi intrépido diante dos mais fortes e inconsequentes. Sabia montar e atirar com destreza. Tinha resistência no treinamento da selva. Dançava com a fome nas noites frias na mata. Sedia o que tinha para os mais fracos, era roubado pelos maiores. Calado. Não reclamava das brincadeiras, da injustiça, da dor.


Terminado o período de capacitação, foi enviado para o campo de batalha. Lá, onde carne podre é perfume, ninguém acreditava que ele era o filho do maior nas forças armadas. Aquele magro, submisso, machucado, menor em patente do grupo, filho de alguém importante? Conhecedor das táticas de guerra? As coisas pioraram. Seu tempo de treinamento foi apenas a introdução das dores.


Bucha de canhão. Foi para a frente de batalha. Guerreava com ousadia, com coragem, força e amor. Era misericordioso com os vencidos. Fez prisioneiros de guerra. Todos mortos pelos seus companheiros. Não permitia que um companheiro ferido ficasse para trás, nem seu cadáver apodrecer naquele lugar. Como formiga carregava o amigo morto.


Chorava todas as noites, angustiado, revoltado com os motivos da guerra. Indignado com a dureza humana em sua luta pelo poder. Seria sua última batalha. Pegou suas armas e foi para o campo de batalha. Enquanto avançavam no campo, percebia ele que seu exército ficava menor. Seus pés pisavam crânios, sua bota encharcada de lama e sangue, seus olhos contemplavam explosões, fumaça, vultos, corpos que caem. Seus ouvidos adormeciam diante de tanto grito, explosão e tiros. Suas narinas dormentes de tanta pólvora e morte. Levou tiro pelos amigos. Antes de seu rosto afundar na lama, pôde ver os amigos se afastarem, fugirem. Mas ele não era assim.


De suas memórias, de toda palavra de fé que falava no refeitório aos soldados, de seu íntimo brotou o último fôlego. Ajoelhou-se, levantou a cabeça e viu distante, afundada na lama, a bandeira da liberdade, bandeira de sua tropa, bandeira pela qual concordou lutar. Jogou suas armas no chão, cambaleando andou até a bandeira. Ergueu-a. Neste momento, sua tropa viu a bandeira erguida e interrompeu a fuga, interrompeu a luta. Foi como se estivem todos no vácuo e som não se propagasse. Não ouvia mais os tiros e explosões. Ele então caminhou para frente, com a andeira erguida. Tomou mais alguns tiros. Ninguém ouviu seu gemido.


Curiosos, os inimigos interromperam o massacre. Sangrando todo o seu sangue, rastejou até o lado inimigo e cravou a bandeira no ponto mais alto. Então morreu. Mas a magnitude de seu gesto, como o vento se espalhou e não houve uma só fresta em que não entrou. Mas ele apenas era um Inspirado.


Segundo tempo. Minutos finais. Placar desfavorável. Chuva. Buracos no campo. Equipe desunida. Cansaço. Um bagaço resumiria suas forças. Ele, a grande estrela até então não havia brilhado como todos esperavam. E ninguém dava ouvidos a suas palavras e boas novas. Para onde seus olhos corriam viam o desânimo. Viam morte. Corpo suados e frustrados. Ele, o ponta; toda a responsabilidade sobre ele. Se não bastasse tudo, o time adversário estava no ataque. Bola na marca. Ele era o único que acreditava. Aos berros encorajava o goleiro, este embalado pelas vaiais. Antes do juiz se posicionar, ele foi até o goleiro, gritou, e o abraçou. Disse ao ouvido daquele jogador o que ninguém até então havia dito. “eu acredito”. Foi como se soprasse nas narinas daquele jogador solitário.


A bola não entrou, era o omento do contra-ataque. A bola foi lançada. Todos emocionados em não tomar o gol, começaram a fazer sua parte. Bola no meio, do meio para a ponta. O ponta viu o lateral melhor posicionado. No lugar no drible fantástico, o toque da humildade. O lateral marca o gol. Empate.


Bola no centro. Apito na boca. Minutos acrescentados. Contusões. Expulsões. A torcida que já tinha em parte ido embora, volta aos seus lugares, retoma os gritos de incentivo. Escanteio. Todo o time adversário na área, inclusive o goleiro. A tensão de perder, a coragem de se lançar. O zagueiro gigante. O lateral que fez o gol, momento de visão. O lançamento longo. O ponta acreditou. Ele correu como nunca pensou conseguir correr, não havia mais ninguém para o impedir, mas a bola não estava indo para o gol, alguém precisava agir. Ele sentia o ácido lático acumulado nas pernas ensaiar uma câimbra, rompeu suas dores, intensificou a corrida, a bola, na diagonal, tinha passado do primeiro poste, passado em frente ao meio do gol, se aproximava de passar em frente ao segundo poste e ir para fora, em um gesto quase irresponsável se lançou, seus pés tocaram a bola, sua cabeça bateu na trave. Venceram a partida. Desmaiado estava não um herói, não uma estrela, muito menos um jogador, mas ali estava um homem Inspirado. Mais do que a imagem do gol e do troféu, seu exemplo foi disseminado em cada gramado.


Andava pelas ruas sem que ninguém a notasse. Escutava nos rádios sobre um grande jogador e o título inédito que ele garantiu ao time que o revelara. Título que custou sua vida. Nos jornais que embrulhavam o peixe no mercado viu uma foto de uma bandeira em um campo de guerra seguida de uma matéria sobre um soldado.


Em casa, não tinha prazer para cozinhar, fritava o peixe e comia antes que a cordura escorresse. Sentada na sala, tudo desligado, tudo apagado, ouvia o mundo e seus ruídos. Carros, choros, gozos e brigas. Risadas. Calada, intercedia por cada mazela que percebia, e também por aquelas que desconhecia. Agradecia por todos e ia dormir.

Todos os dias de sua vida após sair da casa dos pais foram de abandono. Nunca foi sequer cumprimentada. Mas ainda que tudo batia firme sobre sua cabeça e seus ombros, ela tinha uma alegria no coração que nem suas lágrimas conseguia sufocar. Um sorriso iluminava seus passos, quando se olhava no espelho não via seu corpo deformado, mas via sua pureza, via o seu amor, via a virtude que um recebera com o simples fato de dobrar os joelhos. Ela continua por aí, sem ter mesmo um nome a ser mencionado. Mas para ela pouco importa. Mais vale o resultado de suas orações. Tudo o mais, ao tempo certo, da maneira certa, será acrescentado, segundo a vontade de Deus. Uma mulher Inspirada.


Sentado com o dicionário no colo, o pequeno pergunta ao pai o que é inspirado. O pai dedilha as páginas daquele livro e mostra. O filho lê, mas não satisfeito pergunta o que leva alguém a estar inspirado. O pai resume em uma palavra: amor.


O filho ainda sem entender insiste em como o amor pode inspirar e inspirar a ponto de se sentir dor. O pai explica. Diz que o amor verdadeiramente é manifestado nos momentos de dor, onde tudo sofre, suporta e supera. Onde a dor é combustível e o amor a direção certa e a ação de fazer algo é apenas a confirmação de uma escolha. Escolha? Sim. Nunca abrir mão do amor. Mesmo que precise morrer. Onde está o amor? Pergunta o menino? O pai se levanta, sorri, pega a Bíblia. Sentado ao lado do filho ele diz: Respira fundo meu filho. Viu, tem amor aí dentro de você agora. Deus é amor, nos fez parecidos com ele, e na hora de botar a gente pra funcionar, soprou em nossas narinas.


O menino pergunta sobre o que teria inspirado os personagens das três histórias que o pai havia contado. O pai ainda com a Bíblia na mão disse: Meu filho, muitos morrem por uma bandeira, uma ideia, muitos morrem por uma paixão, um título, e muitos morrem socialmente pelo bem de um próximo que não o conhece, reconhece e merece. Mas no caso destes personagens que te contei, eu tenho certeza que eles se inspiraram em um ser que se fez homem, sendo Deus, foi perseguido, desacreditado, humilhado, maltratado, machucado, traído, assassinado sem tem nem mesmo uma partícula de culpa. Um ser que assumiu tudo calado. Morreu pelos pecados de toda a humanidade. Mas até em sua morte nos surpreendeu, pois conforme tinha afirmado, ele ressuscitou e é o Deus vivo, que virá para nos buscar.


Não tem como não ser inspirado pelo exemplo de Jesus. E saber que além de seu feito aqui na terra, algo ainda maior viveremos com ele na eternidade, onde o tempo conforme concebemos não existe. O melhor nisso tudo, meu filho, é que podemos ainda escolher se queremos ou não viver como servos e filhos de Deus.


O menino fecha o dicionário, pega a bíblia das mãos no pai e abre em Josué 24; 15 com um sorriso infante e abraça o pai.


Mesmo que essa história seja inventada. A essência dela se repete em nossas casas, no trabalho, nas ruas por onde passamos, nos ambientes que habitamos; embora nem sempre estejamos abertos para sentir, compreender e escolher.

Porém, se vos parece mal aos vossos olhos servir ao Senhor, escolhei hoje a quem sirvais: se os deuses a quem serviram vossos pais, que estavam dalém do rio, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais; porém eu e a minha casa serviremos ao Senhor. Js 24; 15

Um comentário:

  1. Creio que as pessoas devem retirar os olhos das próprias escolhas, feridas e desejos e buscar entender o própósito real da vida. Li alguns dos post. concordo e discordo de alguns, mas o fato de levantar uma poeira, para os olhos pensarem melhor no que vêe, me agrada.

    PARA DE OLHAR PARA O UMBIGO MOÇADA.DEUS NÃO QUER GENTE FELIZ. QUER SERVOS HUMILDES, FIÉIS. APÓS SEREM ASSIM, ENTENDEM O QUE É FELICIDADE

    VALEW

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