sábado, 30 de janeiro de 2010

“Eles atiram em cavalos, não atiram?”




PÍLULAS DE REALIDADE

Ler não somente as letras. Sentir o que lê sem dramatizar. Sentir o que vivencia, inclusive a dor. O corpo e suas sensibilidades. O cotidiano como pano de fundo central de um encontro de interpretações. Leituras de Passaporte – Fernando Bonassi – e Eles eram muitos cavalos – Luiz Ruffato.

O texto de Bonassi apresenta uma crueza e sensibilidade que permite dialogar com os muitos cavalos que não usam passaporte, mas são carimbados ao migrarem constantemente, bordando e transbordando na malha que nem sempre é humana, é urbana. Cavalos que migram inclusive dentro deles próprios. Deles; não seríamos nós cavalos? Possivelmente não. “Eles atiram em cavalos, não atiram?”.

Ao transitar pelo passaporte de Bonassi é possível perceber a crueza recorrente do ato complexo, e nem por isso sempre difícil, de relatar a realidade. Seja em “piercings” ou em vacas distraídas. Lúdico lúcido de um real acinzentado; ácido. A natureza morta de Bonassi é ótima e casa com o homônimo dos muitos cavalos (selados).

As verdades e mentiras suscitam aquilo que ninguém assume e adora sentir e experimentar. A sensibilidade apurada da mente garante o prazer pleno do corpo, no qual se inclui a mente. Mil e uma noites esvaem-se entre os poros de maridos e mulheres que se espreitam pelo tempo para não eternizarem-se nos trâmites dos supermercados. Tem dia que tudo tem “cara” de supermercado.

Somos lagartos infelizes, sonolentos e soberbos no planalto central, esticados ao sol, comendo a brisa que falta. “Vamos viver de brisa”.

Simples e complexos. Solitários, vivemos cada um uma realidade. A imagem que entra pelos nossos olhos passa pelo filtro do desprezo e do interesse próprio; sistema de relevância. Somos cavalos em uma infindável noite dos desesperados , na qual nosso passaporte não indica um destino, uma chegada, apenas partida.

A simplicidade de viver um novo momento que na verdade não é novo, é repetido. Sentir a mórbida natureza do cotidiano se apresentar todos os dias àqueles que teimam em não viver debaixo d’água.

Bonassi relata a crua imagem que os olhos capturam durante as andanças entre muitos cavalos, que teimam em povoar o mundo. Ruffato traz os relatos dos anônimos do cotidiano, cavalos fadados a pastarem entre seus sentimentos, suas idéias e seus “semelhantes”.

Os livros são como uma casa de espelhos. A imaginação e a percepção amparam os olhos e os guiam através dos diversos reflexos do famigerado real. Nos trâmites da leitura, sente-se a possibilidade de poder interpretar o que se chama de real sem ter como base os rótulos socialmente estabelecidos.

Bonassi nos dá pílulas e nos muitos cavalos de Ruffato encontramos o passaporte adequado para engolirmos e sermos engolidos pelas pílulas de realidade. Humor e sarcasmo. Sangue suor, sorriso e gozo. Bonassi e Ruffato e uma dose de madrugada. O travesseiro anseia uma mente que sempre borbulha.

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